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domingo, 4 de agosto de 2013

Uma Barca Velha

A lua no céu denunciava que aquela noite seria uma das mais quentes, o céu estava todo estrelado e nós teríamos que procurar comida, meus pais morreram quando eu completei cinco anos e até então vivo nas ruas de Salvador, moro no cais entre embarcações e navios, existe um lugar perto do farol que ninguém conhece, lá construímos nosso abrigo, comigo mora treze meninos todos de rua, o bando se divide cada grupo tem uma missão, cinco fica no piar cuidando do nosso local sagrado, cinco anda pelas ruas trazendo o que encontrar para transformar em comida e os outros três ficam entre os navios procurando aventura e gorjetas, entre esses três estou eu, nossos nomes se perderam no tempo e com eles nossos documentos, entre nós é só apelidos.
O meu é alemão por causa dos meus cabelos e pele branca sou chefe do bando tenho hoje dezesseis anos o meu melhor amigo se chama Miojo por causa do cabelo encaracolado e tem também vassoura que tem mania de limpeza e um cabelo de esponja de aço ambos tem quatorze anos, mas o perigoso é o piratinha esse ninguém sabe de onde veio, mas eu não confio nele, tem um traficante aqui na cidade chamado Pirata e o piratinha se diz filho dele, mas ninguém tem certeza, tivemos vários atritos ele fica no bando da rua que rouba e trás comida, mas nem sempre a divisão é justa, pois eu soube por várias vezes que piratinha comeu comida boa pelo caminho e trouxe as sobras para o bando do piar. Mas como diz mãe Joana tudo tem volta, quem tira dos outros um dia tem suas coisas tiradas também, mas como viver sem roubar na miséria que agente vive, nunca soube o que é uma cama quente com leite e histórias contadas pelo pai ou pela mãe, minha mãe já era só quando estava prenha de mim, não sei se ela sabia quem era meu pai, como eu ela teve que fazer coisas que não queria para viver, mas a moléstia tomou conta dela e a levou antes mesmo que eu pudesse questionar minha vida de embrião.
Fiquei um tempo com umas mulheres sujas e sem vida, mas aquilo tudo me dava nojo, fugi e fui morar no cais e lá conheci o resto do bando, um a um nós fomos se virando e quando eu já tinha doze anos consegui dominar todos eles e fazer deles uma família, tirando Piratinha e seus comparsas  os outros oito meninos são uma família para mim.
Dizem quando somos de menores a vida é mais leve, podemos correr riscos que a polícia não pode fazer muita coisa, aqui tem uns abrigos para menores de rua, mas dizem também que não é bom. Na rua tem algo misterioso e perigoso, o mistério está na liberdade que se tem e o perigoso é com quem se depara, mas vamos aprendendo a conviver com os dois, mãe Joana é dona de um centro na cidade de salvador e ela ajuda muito agente, dá conselhos e comida de vez enquanto, nunca fomos obrigados a frequentar o terreiro, pois ela disse que se frequenta algo sagrado quando bate no coração não por interesses materiais, no meu caso interesse pela comida, pois não entendia muito bem quando ela dizia “quando bate no coração” em mim “batia muito no estomago”, as festas dos tais orixás eram de muita fartura e comida boa eu ia sempre a festa era muito linda, coloridas e de muita alegria e dança, eu gostava de ver, meus amigos Miojo e Vassoura também iam, depois ainda a mãe Joana dava uns embrulhinhos para levar para os outros meninos que comiam feito loucos.
Mãe Joana há muito tempo me chamava para morar no terreiro e ser filho dela, mas eu me borrava de medo dos orixás ela me explicava que meu pai de cabeça me guiava pelas ruas o nome dele mais para frente eu vou citar, pois é algo muito importante para eu falar dele.
Bom com o tempo tudo foi se normalizando eu já tinha ponto certo para comer e consegui um trabalho no piar quando um barco chegava, eu carregava as malas e ajudava as moças com seus animais e maletas de frufru, foi ai que eu comecei a ganhar um bom dinheiro, Miojo e Vassoura vieram também, mas dizem que tudo que é bom, dura pouco como nós, outros meninos achavam que também iam ganhar bem e virou um tumulto quando chegavam às embarcações, navios e barcos de pescadores.
Foi quando Pirata viu também um meio de ganhar muito dinheiro, organizou a molecada e botou neles uniformes e passou a dominar a área sendo o único a ganhar com isso, pois para os meninos ele dava apenas um teto e comida, duas coisas bem ruins.
Eu e meus amigos não entramos nessa e fomos para as ruas novamente fazendo a mesma coisa, mas ganhávamos menos.
Só que tinha que ser escondido, pois Piratinha ficava de olho e se visse agente trabalhando contava para Pirata que logo expulsava agente dali.
Eu me lembro dos tempos das vacas gordas agora voltamos à estaca zero.
Já com dezoito anos vi Piratinha sumindo de vez, envolvido com drogas foi preso e passou muito tempo na cadeia junto com ele seus camaradas por um tempo conseguiram nos sustentar depois ele voltava para as ruas e agente se escondia de vez, eu estava cansado dessa vida de come um dia e passa fome dois, Miojo se envolveu com uns moleques de Piratinha e acabou sendo morto devendo para eles, Vassoura conseguiu entrar no exército e nunca mais vi, os outros oito do abrigo foi se espalhando pelo mundo e o lugar ficou vazio, aparecia de vez em quando uns moleques miúdos querendo dominar o abrigo, mas eu não deixava.
Foi quando em uma noite de lua cheia eu ouvia ao longe os toques dos atabaques e fazia muito tempo que eu não frequentava as festas do terreiro, já fazia três dias que eu não comia resolvi dar o ar da graça para mãe Joana.
Era festa de Ogum o guerreiro entre todos os guerreiros o mais destemido, ninguém vence uma batalha como ele, o dono do ferro e vencedor de demandas, entrei no terreiro e Mãe Joana veio me abraçar com muita saudade, pediu uma de suas filhas me servir comida do santo em questão, ao comer e ouvir os cantos de Ogum eu me senti poderoso, não sei o que aconteceu, mas eu estava no meio da roda dançando e rodando como se fosse um guerreiro, o medo passou e a fome também, minha cabeça rodava, ás vezes era eu ás vezes não era e assim foi à noite toda.
Depois que tudo acabou mãe Joana disse que era chegada a hora eu bolei no terreiro e não podia mais fugir do meu destino, como eu não tinha mesmo o que fazer eu resolvi aceitar, estudei, aprendi tudo sobre a religião e em dois tempos estava trabalhando no terreiro, vendo de fora era tudo alegria, mas o trabalho lá dentro era sério, e junto com mãe Joana ajudávamos moleques como eu e muitas outras pessoas com problemas emocionais, às vezes não precisava de trabalho nenhum só de algumas palavras de conforto e ali descobri que como eu e meus amigos existem pessoas muito só no mundo, mesmo com trabalho, dinheiro e parentes próximos.
A compreensão da alma é descoberta por nós seja em qual religião for, mas o importante é fazer o bem.
Pai Ogum foi e será sempre o salvador da minha alma, com ele aprendi a ter respeito pelos meus irmãos e ajudar a quem de mim precisar.
Depois que fiz todas minha obrigações mãe Joana me deu um nome Cristiano e assim fui batizado e coroado “pai Cristiano de Ogum” ela me colocou na escola também fora do terreiro e me formei em médico.
Hoje salvo corpos e salvo almas, tenho um diferencial que muitos não têm, vim do nada e tenho tudo, mas sou igual a todo mundo.
Mãe Joana sempre me dizia, somos iguais perante Deus, quando me lembro da minha infância me sinto feliz, pois tive muitas batalhas a ser vencida e venci.
Certo dia eu fui ajudar na Cruz Vermelha Brasileira e encontrei um jovem bem debilitado ao ver o rosto dele me emocionei era Vassoura, já não tinha o cabelo espichado, pois estava raspado, mas seu rosto era inconfundível e sem pensar fiz de tudo para salvá-lo, depois ele me contou que havia casado e tinha dois filhos lindos e continuava trabalhando para forças armadas, nunca mais nos separamos e como ele encontrei uma jovem chamada Clarice e nos casamos e juntos tivemos três filhos que  ensino tudo que sei de bom e ruim.
A vida é uma caixinha de surpresa temos que buscar nossos próprios caminhos, sem influência preconceituosa de outras pessoas, aceitar as coisas que vem para nós, experimentar e conhecer antes de criticar, minha religião é muito criticada e procurada, mas às pessoas nãos sabem que a religião somos nós que criamos, pois o templo, a igreja ou o terreiro é apenas uma ferramenta para estudarmos e acreditarmos em algo, mas o que vem dentro da nossa alma é o que conta, o que fazemos pelo próximo seja ele da nossa família ou para um estranho e o que conta para Deus.
Nunca paguei um centavo para dona Joana, mas hoje a ajudo em tudo financeiramente, pois como todo mundo ela também paga impostos e despensas de luz e água e somos uma família.
O que ela me deu nunca pediu em troca, mas eu agradeço todos os dias tudo que recebi com carinho e respeito.
Minha infância foi sofrida, minha adolescência um ensinamento, a maturidade o conforto e hoje com noventa anos sou o exemplo, "uma barca velha com ouro dentro".

Fim.

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